Uma enorme mulher negra inflável, de 14 metros, com uma faixa presidencial onde se lê “Mulheres Negras Decidem” foi o ponto de partida de centenas de caravanas que integraram a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras por Reparação e Bem-Viver, nessa terça-feira (25), rumo à Esplanada dos Ministérios. A estimativa é de que cerca de 500 mil pessoas ocuparam as laterais do gramado da área central de Brasília.
Cláudia Vieira, representante do Comitê Nacional da Marcha das Mulheres Negras, responsável pela organização do movimento, explicou que não foi fácil chegar até esse dia e quer que a marcha deixe um legado. “A partir desse mosaico, a gente apresenta para o país, para o mundo e para o Estado brasileiro, para que entendam, de uma vez por todas, que é importante, necessário, é dever e direito olhar para a população negra.”
“Nós, mulheres negras, não merecemos ficar o tempo inteiro no final da fila e sermos tratadas, nessa sociedade, como segmento que pode esperar, que tudo para a gente fique para depois. Temos pressa, temos urgência!"
Pelo governo federal, a ministra da Igualdade Racial (MIR), Anielle Franco, chegou à marcha cercada, de um lado, pela deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), do outro pela também deputada Benedita da Silva (PT-RJ), exaltada por ser a primeira mulher negra a se tornar deputada federal (1987) e também senadora (1995) no Brasil.
Do alto de um dos carros de som, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, declarou que a presença do ministério simbolizava uma ponte entre movimento e Estado.
“Permaneceremos avançando, marchando por bem-viver e por reparação. Por todas as mães que perderam seus filhos e por todas aquelas que vieram antes de nós. Seguimos juntas em marcha, na positividade, hoje e sempre.”
Do luto à luta
Durante o ato, a ministra lembrou da irmã, a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, assassinada em 2000 junto com o motorista dela, Anderson Gomes. Uma das palavras de ordem era “Marielle, presente. Marielle vive.”
O Instituto Marielle Franco esteve presente na Marcha Nacional das Mulheres Negras. A filha de Marielle, Luyara Franco, diretora executiva do instituto, reafirmou que não há democracia sem mulheres negras.
"Cada passo que damos aqui carrega a força de todas as mulheres negras que nos antecederam. Essa marcha é o nosso grito coletivo por justiça e dignidade, a prova viva de que a memória da minha mãe segue florescendo em cada uma de nós.”
A mãe de Anielle e Marielle, avó de Luyara e cofundadora do Instituto Marielle Franco, a advogada Marinete Silva, afirmou que marchar hoje é dizer ao Brasil que esse segmento não aceita mais ser silenciado.
“Cada mulher negra aqui reivindica o direito de viver sem medo, de ter seu luto respeitado e sua voz reconhecida. Democracia só existe quando nossas vidas importam.
Violência de corpos negros
A dor das mulheres dessa família é compartilhada por outras mulheres negras. Um tapete, com incontáveis fotos de vítimas da violência em favelas do Rio de Janeiro nos últimos anos, ocupou metros do chão da concentração da marcha. Cada rosto uma história, um caso de violência.
Outra participante da marcha, Daniela Augusto, representa o Movimento Mães de Maio na Baixada Santista, em São Paulo. O grupo foi criado a partir de uma série de chacinas e assassinatos, em 2006.
As vítimas eram, em sua maioria, jovens negros, pobres e moradores de periferias. Estima-se que entre 450 e 600 pessoas tenham sido mortas.
Para Daniela, o Estado brasileiro é o primeiro violador dos jovens negros.
“Historicamente, no Brasil, a herança do processo de escravização é a perseguição, o controle e a eliminação de corpos negros.”
Ela pediu o fim da execução dos filhos que as mulheres negras amam. Para a militante, a violência e, pior, o feminicídio são ainda em maior número contra as mulheres negras, porque é agregado a esse contexto o machismo estrutural.
“Homens negros, indígenas, brancos, historicamente, entendem que o corpo da mulher é uma propriedade. Então, o machismo é muito introjetado a partir dessa lógica eurocêntrica de que a mulher deve servir, de que é um objeto.
"Aqui na marcha, em todos os espaços que a gente ocupa, lutamos contra a ideia de que nossos corpos são rentáveis, são utilizáveis ou são objetos de violência, do Estado, ou seja, do machismo, perpetrado especialmente pelos homens”, afirma Daniela Augusto, do Movimento Mães de Maio na Baixada Santista.
Negras em espaços de poder
A alguns quilômetros, era possível ver uma grande bandeira do Brasil levada pelas participantes da marcha pedindo a indicação de uma mulher negra para a vaga de ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) deixada pela aposentadoria antecipada do ex-ministro Luís Roberto Barroso. Porém, a sabatina do advogado-geral da União (AGU), Jorge Messias, indicado à vaga pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está marcada para o dia 10 de dezembro, no Senado.
A deputada Erika Kokay (PT-DF) relatou que esteve na primeira Marcha Nacional das Mulheres Negras, em 2015.
“Ela veio como lufada dos ventos dos quilombos, porque se esse país é de casas grandes, senzalas, é também de quilombos”.
Dez anos depois, a parlamentar vê a necessidade de políticas públicas para esse importante segmento da população brasileira e a ocupação de espaços de poder pelas mulheres.
“É uma marcha que deixará as suas marcas na Esplanada dos Ministérios e que traz a voz, o canto, a dança, a consciência negra para a capital da República.”
Docentes negras
A professora Maria Edna Bezerra da Silva, da Universidade Federal de Alagoas, reconhece o valor das cotas nas universidades e dos concursos públicos, mas participou da marcha para reivindicar o aumento da docência negra em instituições de ensino superior.
“Embora tenhamos avançado em uma política de cota para estudantes, os docentes ainda são muito poucos dentro das universidades. Ainda não temos, de fato, uma igualdade, uma paridade em número de professores e docentes negros nas instituições.
Homens na marcha
Entre os cerca de 500 mil participantes da marcha, havia homens que apoiam ativamente as causas das mulheres, por entender que a busca pela igualdade de gênero é uma responsabilidade de toda a sociedade.
Leno Farias, de um povoado de terreiro do Ceará, é um desses homens. Ele disse que é fruto do matriarcado e que as mulheres ocupam posições de liderança em sua vida.
“Minha descendência é toda regida por mulheres. Então estar na marcha é uma coisa muito normal. Elas são as líderes. Dentro da tradição, da minha perspectiva de cosmovisão, para mim, Deus é uma mulher”, resumiu.
Leno entende que a violência contra as mulheres é causada pela incompreensão masculina sobre a potência feminina. “Eles têm medo do poder que elas têm. Não conseguem conviver com isso.”
Resistência
Centenas de mulheres quilombolas se manifestaram na marcha para ir além do aspecto histórico de resistência desses espaços. Elas se consideram guardiãs de território e da biodiversidade.
Para essa comunidade, é importante que haja o reconhecimento e a valorização dos quilombolas e seja dado apoio para que permaneçam em seus territórios. .
Aparecida Mendes, do território quilombola Conceição das Crioulas, no segundo distrito de Salgueiro (Pernambuco), explicou que sua comunidade contribui para a preservação cultural, conservação ambiental e segurança alimentar. Ela luta por direitos territoriais e combate ao racismo estrutural.
"É importante a gente mostrar para o mundo a nossa presença, a nossa existência, dizer para o Estado brasileiro, para os demais países que, na medida em que a gente dá visibilidade à nossa luta, está dizendo: ‘Existimos, somos demandantes de direitos, também cuidadores desses territórios, da riqueza do Brasil. Portanto, a dívida que os estados têm com o povo quilombola precisa ser levada em consideração.”, reivindica Aparecida.
Fim da marcha
O encerramento da 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras reforçou a organização das mulheres afro-brasileiras, afro-latinas e afro-caribenhas. Elas reafirmaram, em Brasília, a luta pela vida sem violência, pela igualdade plena de direitos e oportunidades. E deixaram claro que as pautas são inegociáveis para a construção de um futuro mais justo e democrático.