Artigo - A guerra invisível do crime organizado: tática do espetáculo e cegueira estrutural

A segurança pública no Brasil, especialmente no combate ao crime organizado, tem sido palco de uma dissonância ética e operacional que reflete profundas fraturas sociais e ideológicas. Enquanto o discurso de ordem e o combate implacável ao crime dominam o cenário político, a prática governamental, particularmente aquela ancorada em ideologias radicais de extrema direita, revela um foco seletivo que, paradoxalmente, parece perpetuar a própria estrutura criminosa que se propõe a desmantelar.

?A tática, muitas vezes descrita como uma busca por resultados imediatos e midiáticos, concentra-se no elo mais visível e vulnerável da cadeia: as comunidades pobres, majoritariamente negras, nas favelas e periferias.

? O efeito espetáculo nas comunidades vulneráveis

?O caso recente do Rio de Janeiro, com megaoperações que resultaram em um elevado número de mortes, incluindo civis e policiais, expõe essa lógica.

Tais investidas, vendidas ao público como demonstrações de força no combate ao crime organizado, parecem operar mais como um mecanismo de visibilidade política do que como uma estratégia eficiente para desarticular as cúpulas financeiras e logísticas.

?”A retórica do ‘combate ao mal’ encontra uma ressonância perversa em uma consciência coletiva que, culturalmente, ainda carrega vestígios de uma lógica escravagista e sentenciadora: a de que o perigo e o criminoso habitam o ‘porão’ da sociedade, entre os menos favorecidos.”

?Essa focalização, contudo, é dissimulada em seu objetivo geral. Enquanto o foco se estreita nas escaramuças dos morros, permitindo a produção de imagens de “guerra” que servem como acoplamento estrutural para uma tática política eleitoral, o verdadeiro coração financeiro do crime prospera no que se convencionou chamar de “andar de cima”.

? Estrutura financeira: o colarinho branco e a contradição

?O contraponto a essa tática letal nas periferias é evidenciado pela forma como o poder público reage quando o cerco se fecha em torno dos fluxos de capital.

?Em um movimento que ilustra a parcialidade no combate, a atenção se volta para o cenário da Refinaria de Manguinhos no Rio de Janeiro. Recentemente, investigações da Polícia Federal apontaram para fortes indícios de que a instituição servia como um “portal” para a lavagem de dinheiro do crime organizado, um mecanismo que irrigava o capital das facções no setor de combustíveis.

?Enquanto o Governo Federal (de centro-esquerda) atuou pelo fechamento da refinaria, em uma ação que visava atingir a asfixia financeira do crime, o Governo Estadual (de extrema direita) agiu judicialmente para desfazer a liminar de interdição, permitindo a retomada das operações.

?Essa disparidade de ações sublinha uma verdade incômoda: a manutenção de estruturas que facilitam a lavagem de dinheiro, muitas vezes envolvendo o “colarinho branco” e figuras do poder político (como evidenciado pelas investigações que citam conexões de políticos do Centrão e da extrema-direita), sugere que o crime organizado não é um parasita externo, mas sim uma ferramenta integrada à dinâmica social e política, dirigida por interesses de uma elite.

O círculo vicioso e a perspectiva de transformar

?A prática de mirar apenas o elo mais fraco da cadeia criminosa garante, no âmbito da ontogenia do fenômeno (sua origem e desenvolvimento), a sua própria continuidade. O “andar de cima” não se preocupa com as chacinas no “porão”, pois a repressão que elimina indivíduos de baixa patente não atinge a capacidade de reprodução sistêmica do crime, garantindo um moto-perpétuo de substituição e aliciamento.

?A segurança pública, sob essa ótica ideológica, transforma-se em um instrumento de gestão social que seleciona quem deve ser punido e quem deve ser protegido, usando a violência nas periferias como um ativo político na disputa eleitoral (campanhas para 2026, neste caso), enquanto assegura a circulação do capital ilícito para seus patrocinadores no poder.

?A questão que se impõe é: deixaremos que essa narrativa de combate seletivo e midiático continue a vigorar? A resposta, talvez, resida na capacidade da sociedade civil – e de entidades como as Centrais Sindicais, com seus recentes manifestos – de forçar um desvio nesse ciclo, exigindo que a verdadeira inteligência e a força do Estado se voltem para a asfixia financeira e a responsabilização das cúpulas, onde o crime, de fato, se estrutura e se reproduz.


Diógenes Sandim Martins
é médico, diretor do Sindnapi e secretário-geral do CMI/SP

 

O Mundo Sindical e os cookies: nós usamos os cookies para guardar estatísticas de visitas, melhorando sua experiência de navegação.
Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade.