Artigo - A ladeira social no Brasil

No pós-golpe, a quantidade de miseráveis dobrou e a de pobres cresceu 23%. Laços de civilidade foram rompidos — e identidades coletivas, embaralhadas. Enfrentar esta barbárie requer nova concepção de seguridade diante dos dilemas da Era Digital.

A infraestrutura econômica sobre a qual as classes e frações de classes sociais no Brasil se estruturam sofreu uma profunda derrocada desde a segunda metade da década passada. O aprofundamento da estagnação secular que se abate no país de longa data produziu generalizado rebaixamento no padrão de vida, salvo a exceção de sempre, representada por minoria de super-ricos, poderosos e privilegiados.

Ao se considerar o primeiro quarto do século 21, por exemplo, observam-se dois movimentos muito distintos no que se refere à estrutura da sociedade. Após importante dinamismo econômico acompanhado por positivas e profundas transformações sociais impulsionadas por governos petistas, a economia brasileira sofreu profunda inflexão, que terminou por jogar os brasileiros numa espécie de tobogã social.

Com base na metodologia apropriada ao estudo e evolução da estrutura social brasileira (Quadros, W. A dinâmica da classe média, 2006), concebe-se a existência de três grandes e distintos segmentos populacionais: as classes superior, intermediária e inferior. Entre 2003 e 2014, por exemplo, a classe superior, constituída pelos maiores níveis de rendimento nas ocupações que o capitalismo consegue oferecer, registrou aumento acumulado de 59%, com a ascensão de 7,8 milhões de pessoas.

Para o mesmo período de tempo, a classe intermediária na hierarquia dos rendimentos no conjunto das ocupações apresentou crescimento acumulado de 61%, com a incorporação de 46,1 milhões de brasileiros, enquanto a classe inferior correspondente à somatória de pobres e miseráveis regrediu 41%, com o deslocamento social de 40,6 milhões de pessoas. No período de 2002 a 2014, a população brasileira cresceu 7,1% (13,3 milhões de pessoas) segundo o IBGE.

Para o período seguinte (2015-2021), a trajetória da estrutura social sofreu inegável retrocesso. Enquanto a população brasileira aumentou 5,7% (11,5 milhões de pessoas), a classe superior perdeu 3,5 milhões de pessoas, equivalendo ao decréscimo de 16,5% no acumulado dos últimos sete anos.

A classe intermediária também foi diminuída em 8,4 milhões de pessoas, o que significou a redução de 6,9% acumulada no mesmo período de tempo. Por fim, o inchamento, em consequência, da classe inferior na estrutura social, uma vez que respondeu pela incorporação de 23,4 milhões de brasileiros, o equivalente ao aumento acumulado de 40% entre 2015 e 2021.

O rebaixamento da estrutura social se refletiu no crescimento da quantidade de pobres e miseráveis, bem como no estreitamento da chamada classe média brasileira. No caso dos miseráveis houve a duplicação de sua quantidade, ao passo que os pobres cresceram 23% nos últimos sete anos.

Em grande medida, os mais recentes acontecimentos da cena política parecem traduzir as implicações que decorrem do avanço central do processo da desestruturação das classes e frações de classes sociais no Brasil. A perda de sustentação da estrutura social anterior reflete o esvaziamento da infraestrutura econômica imposto pela interrupção do crescimento produtivo favorecido pela aceleração do rentismo e aprofundamento do modelo primário-exportador.

A predominância da lógica de desvalorização social e de generalização degradante das condições de vida revela tanto a precarização e o rebaixamento dos rendimentos do trabalho como o fechamento do horizonte de um futuro melhor. As situações observadas de fracasso e abandono educacional, ampliação da precarização ocupacional e agravamento da segregação urbana parecem estar combinadas com as formas abertas de racismo e da realidade do trabalho análogo à escravidão.

Em pouco tempo, os laços sociais e de civilidade nas relações corporativas foram sendo rompidos, produzindo certo embaralhamento das identidades coletivas que até então estruturavam a sociedade brasileira. O fantasma da desclassificação social avançou, não mais bastando tomar consciência do problema a fim de amortecer o seu impacto ou mesmo oferecer a sua denúncia moral.

Torna-se necessário, diante disso, a reconstituição da engrenagem da estrutura social com a volta da vitalidade da infraestrutura econômica assentada em outro projeto de modernidade com igualdade social. Para isso, a superação do conceito de sociedade salarial com a importante regulação de direitos sociais e trabalhistas herdada da Revolução de 1930.

Da mesma forma, é necessário repensar a função redistributivista do fundo público definido pela Constituição de 1988. Ainda que importantíssimo na gestão e postergação da barbárie social mostrou ser incapaz de estruturar a sociedade brasileira em novas bases.

É este o sentido da esperança constitutiva de uma nova consolidação das leis de seguridade social. Eis porque a transição atual para a Era Digital requer da infraestrutura econômica um salto tecnológico: sem o decisivo, completo e articulado enfrentamento do tobogã social atual, permanecerá intocável o excedente estrutural de mão de obra cuja sobrevivência depende do vazamento das altas rendas ou do fundo público.

 

Fonte: www.dmtemdebate.com.br/


Marcio Pochmann
economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.

 

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